Eis que li Carol Chiovatto, parte 2/2 “Aspectos Conteudísticos”

Só lembrando que é a parte 2 de um artigo que contém spoilers de:

  • Porém, Bruxa
  • Sensciente nível 5
  • Árvore Inexplicável
  • Ecos de Maztah
  • A Última Feiticeira de Florença
  • Fundo do Abismo
  • Mestres do Conhecimento

Se você ainda não leu a primeira parte em que falo sobre aspectos formais da obra de Carol Chiovatto, é só clicar aqui.

Aspectos Conteudísticos

O conteúdo das históricas é a parte que, para mim, foi mais polêmica.

Não acredito que histórias tenham a obrigação de serem educativas ou moralizantes. Na verdade, histórias são… histórias. Não sei delimitar uma função para elas. É comunicação, expressão, formação, discussão, reflexão, diversão, tudo junto e muito mais.

Porém, nesse exercício de recepção e reação a histórias, é inevitável levantarmos alguns questionamentos. Eu gostaria que minhas pontuações sejam vistas assim: uma continuidade do diálogo iniciado pela história, não uma censura ou um manual do que deve ou não ser feito. Esta é apenas minha contribuição.

Quando a lacrada sai pela culatra

A lacrada é algo que se tornou bastante popular na internet entre jovens que se identificam com ideias de progressismo e justiça social. Não sei e não me proponho a desvendar a origem deste comportamento, embora acredite que a sua manutenção tenha a ver com a satisfação de corrigir alguém e estar, ao mesmo tempo, defendendo uma causa importante.

Enfim, ela foi muito criticada por conservadores que montaram muitas campanhas contra o “politicamente correto”. Frases como “o mundo tá chato”, “não pode nem mais brincar”, e etc, também vem ganhando muito espaço nos últimos anos. Como reação, parece que o campo progressivo resolveu  intensificar as discussões e lacradas. Acredito que a página mais representativa desse movimento lacrador seja a Quebrando o Tabu.

Tá, existe algum problema com isso? Não necessariamente… Buscar justiça social, levar as pessoas à reflexão e, se for preciso, corrigir erros cometidos são atitudes saudáveis ‒‒ e todas elas são identificadas como lacradas.

Enfim, eu diria que o maior problema associado às lacradas é a criação das Fadas Sensatas. Isso começou como uma piada para endossar alguém que teve uma fala ou intervenção importante ‒‒ lacrada ‒‒, mas de repente muitas pessoas começaram a tratar outras como se realmente fossem perfeitas, prontas, e sem defeitos. Óbvio que, hora ou outra, as Fadas Sensatas se mostram não tão sensatas, e é o momento em que surge o cancelamento.

Acontece que tudo isso são ações individuais que estão anos-luz de se apresentarem como solução de problemas estruturais. Além disso, mesmo quando se lembra da interseccionalidade, é comum as lacradas permanecerem num campo superficial. Sem um esforço intelectual e coletivo para desvendar as estruturas da sociabilidade, não dá para chegar muito longe.

E ao não chegar muito longe, os erros cometidos podem ser bem feios. É o que rola em boa parte do conteúdo da Carol Chiovatto principalmente em seus romances.

Existem algumas situações colocadas na história que cumprem a função de construir a imagem de alguma personagem. E certas situações são oportunidades para a personagem lacrar e, talvez, se construir enquanto Fada Sensata. Pessoalmente, por toda a problemática que isso traz na vida real, eu tendo a não gostar muito desse recurso. Às vezes é até legal ver que uma personagem está tão de saco cheio das microagressões cotidianas quanto eu, gera um sentimento de identificação. Porém, quando isso não é feito de maneira orgânica na história, fica apenas o gosto ruim. E este gosto ruim é intensificado quando a lacrada acaba se configurando numa situação bem problemática. É o caso, por exemplo, do primeiro encontro da personagem Ísis Rosetti, protagonista de Porém, Bruxa, e a delegada Helena, que é uma mulher negra.

“‒‒ Eu sei… ‒‒ Helena passou as mãos pelos cabelos outra vez. Seu cansaço era óbvio nas pálpebras pesadas e nas olheiras arroxeadas, mal ocultas pela maquiagem do dia anterior. ‒‒ Olha, não sei por onde começar. Pode não ter nada a ver com as suas macumbas, mas preciso de um norte. Dá uma olhada e me aponta na direção certa. Por favor. É a mãe de uma menininha.

(…)

‒‒ Ok. E, pro seu governo, o que eu faço não tem nada a ver com ‘macumba’, que, aliás, é um tipo de tambor e não um trabalho. Respeita os orixás e deia eles em paz no canto deles. Helena já sabia. Só não conseguia nomear ou definir o que eu fazia. Falar em voz alta sobre eu ser uma bruxa soava-lhe risível, na melhor das hipóteses, especialmente por eu ter tão pouco de qualquer estereótipo. Eu poderia ser uma anônima qualquer, incógnita nas multidões, apenas mais um rosto entre tantos. Alguns me julgavam mais bonita que a média; outros, só comum”

(pág. 17, narrado por Ísis)

Helena usar “macumba” dessa maneira que soa pejorativa foi algo totalmente gratuito, que só serviu para Ísis ter a oportunidade de dizer que não se deve falar desse jeito. E Ísis mandar essa lacrada só serviu para construir a imagem da personagem enquanto uma fada sensata que não performa racismo religioso.

Tudo bem, o fato de Helena ser negra não a isenta de performar racismo religioso. Isso, infelizmente, é comum. Afinal, estamos falando de um problema estrutural. As pessoas não olham para a própria cor da pele e automaticamente reconhecem que religiões de matriz africana tem algo a ver com a ancestralidade delas, que o cristianismo ‒‒ religião na qual aprenderam desde cedo que devem professar ‒‒ teve parte na atrocidade colonial que apagou sua história e ainda é responsável por várias das condições atuais de vulnerabilidade social em que se encontram. Então fazem a associação: “bruxaria é coisa do demônio, e macumba é bruxaria. Bruxaria é macumba, macumba é coisa do demônio”. O problema deste trecho não é verossimilhança, aquela situação realmente pode acontecer!

O problema é o simbolismo de uma branca corrigir uma negra sobre uma questão que diz respeito a pessoas negras. Essa situação grita um clichê muito usado nas histórias: o Salvador Branco (White Savior). Quando as pessoas racializadas não conseguem resolver os próprios problemas, sempre aparece uma pessoa branca de boa índole capaz de salvá-las (mesmo que os tais problemas das pessoas racializadas tenham surgido por causa de pessoas brancas). A Ísis, neste livro, é uma grande Salvadora Branca ‒‒ mas vamos deixar para comentar este detalhe mais tarde.

Talvez a cena fosse até passável se não fosse a reflexão da Ísis logo a seguir. Ela julga que Helena disse “macumba” porque não consegue dizer “bruxaria”, e não disse “bruxaria” porque Ísis não se enquadra em nenhum estereótipo. Daí Ísis começa a se descrever como uma pessoa comum, genérica, considerada por alguns até como “mais bonita que a média”. Isso é a descrição padrão de alguém branco. Realmente, as pessoas brancas não cabem nos estereótipos, elas são “normais”. A branquitude se colocou como universal, o padrão, os outros é quem são diferentes.

É importante ressaltar que essa linha de raciocínio não é a de Helena, e sim a suposição que Ísis faz. A fala dela pode até ajudar a construir a imagem de “não sou racista”, mas ela continua pensando como uma pessoa branca que não foi muito a fundo em questões étnico-raciais. Acredito inclusive que, se Ísis tivesse ido mais a fundo, não teria lacrado ali. A resposta seria bem diferente.

Mas bem… O problema de construir a imagem de Ísis como “não racista-religiosa” é que ela performa, mais tarde, e várias vezes, o mesmo processo do racismo religioso. Não, ela não coloca o cristianismo enquanto religião superior. Mas faz isso com a bruxaria que pratica. A bruxaria, tendo a Terra como divindade, não é limitada como as outras religiões.

“Olhei para o céu triste de inverno, morrendo de pena do Verbo. Devia ser muito deprimente seus supostos fiéis julgarem que o serviam ao criar uma energia tão maligna. Ele não tinha poder algum ali. Felizmente, a Terra não dependia de fé e uma de suas filhas resolveria o problema. Normalmente, eu não poderia fazer o que planejava sem a autorização expressa do Conselho, mas um orixá acabara de me presentear.”

(p. 33, narrado por Ísis)

“‒‒ Todas as religiões se preocupam com o destino da alma, porque até as doutrinas mais presunçosas sabem que o corpo pertence à Terra. ‒‒ Arrastei-me até ele e busquei a pedra do Corregedor em seu bolso até encontrá-la. Ele permaneceu imóvel, estirado como havia caído. ‒‒ Você pode irritar quantos deuses quiser; eles te esperam morrer para acertar as contas. Mas a Terra… ‒‒ Aproximei-me de Victor, aos tropeços, e ajudei-o a se erguer até conseguir sentar sobre os calcanhares. Pedro, Helena e até Robson prestavam tanta atenção em mim que mal piscavam àquela altura ‒‒ Agora você vai ter que usar o poder do seu mestre, Dimas. Só que, sem a proteção que a Terra dá a todos os mortais, ele vai te consumir num instante.”

(p. 232, narrado por Ísis)

Fica parecendo que a bruxaria é uma religião tão superior que é praticamente uma não-religião. No universo construído em Porém, Bruxa, todas as divindades existem, dependendo do quanto se acredita na existência deles. É um recurso que já foi muito usado, consigo me lembrar disso nos livros do Rick Riordan e também em Deuses Americanos, do Neil Gaiman. Porém, a Terra seria uma natureza primordial a qual todos os seres são, de uma forma ou outra, subordinados. Enquanto religiosos se relacionam com suas divindades, bruxos se relacionam direto com a Terra, a fonte de tudo.

A coisa fica ainda mais esquisita se considerarmos que, dentre os bruxos, temos basicamente pessoas brancas. Gente branca, gente branca de olhos azuis, a Cidade dos Nobres parece até uma Europa. Daí tanto indígenas, quanto pobres convertidos ao cristianismo, quanto o povo do candomblé não consegue lidar com os problemas através de sua relação com suas divindades. Precisa do envolvimento de uma bruxa branca. Isso é praticamente racismo religioso do mesmo jeito!

Em Senciente nível 5 não temos, exatamente, personagens lacrando para serem fadas sensatas. Mas temos alguns detalhes de worldbuilding tentando fazer este papel ‒‒ tanto é que, em seu pósfáscio, Cláudia Fusco considerou o mundo de Senciente nível 5 como uma Ustopia, um futuro otimista, mas que não descarta os desafios da realidade. O primeiro deles é o fato de o centro do sistema Universitário de Bílgia abrigar os prédios de Ciências Humanas, Sociais e Artes. Escrever isso no contexto de um país que desvaloriza essas áreas ensaia uma boa mensagem política. Afinal, Bílgia é tecnologicamente superior a todos os sistemas do universo conhecido (principalmente se os eventos de “Mestres do Conhecimento” ainda forem considerados canônicos), e seu centro são estas áreas, que no Brasil, são tidas como sub-áreas, “formadoras de militantes”, ou inúteis.

Esta mensagem, porém, acaba saindo pela culatra porque Bílgia é um Estado Imperialista. Não há outra palavra para descrever: Bílgia é imperialista, o que há de pior em nosso mundo ao se considerar a geopolítica internacional.

O conflito entre Bílgia e Lena-Hátia, motor da história do livro, foi iniciado porque Bílgia quer explorar tungstênio em um território que pertence a Lena-Hátia. Lena-Hátia, por sua vez, não quis aceitar nenhuma oferta de acordo econômico para ceder os direitos de exploração à Bílgia. Como Bílgia responde? Respeita a soberania de Lena-Hátia e desiste de explorar tungstênio no território desejado? Não. No Conselho da Reitoria, começa-se a discutir o uso do “Método Alawara”: acontece que Bílgia tem armas biológicas potentes, vírus que podem dizimar uma espécie inteira. Usariam o terrorismo biológico para forçar Lena-Hátia a ceder o território. Para evitar o uso de um método genocida, a Capitã Lin (uma das protagonistas) sugere o sequestro do emissário Teo (o outro protagonista), o irmão da Soberana de Lena-Hátia. Mantendo Teo sob controle, poderiam negociar.

Não importa se Lin sugeriu um sequestro no lugar de um ataque biológico, o modus operandi de Bílgia é basicamente o mesmo de qualquer Estado imperialista ao longo da história. Usa qualquer meio disponível para alcançar os próprios interesses. Bílgia não estava em posição defensiva nesse conflito. Bílgia quem iniciou tudo.

Ter em seu centro os prédios de Ciências Humanas, Sociais e Artes não torna Bílgia uma ideia esperançosa. Ao contrário, demonstra apenas que mesmo estes conhecimentos, muitas vezes alardeados como uma vacina contra a barbárie, podem ser usados com um objetivo nefasto. Mesmo o fascismo tem suas ciências humanas, sociais e artes.

Após me deparar com essas lacradas pela culatra nos dois romances, confesso que fiquei esperando ecofascismo em Árvore Inexplicável. Felizmente, este é um problema que não aparece neste romance mais recente de Carol Chiovatto. As interações entre os personagens são muito mais orgânicas. Isso pode ser um sinal de amadurecimento da autora.

A Salvadora Branca (eu disse que voltaríamos nisso)

Algo que preciso admitir: é meio difícil escapar do Salvador Branco. Digo isso enquanto pessoa racializada. Ao pensar histórias, resgatamos aquelas que já consumimos no passado. São nossos primeiros modelos. E se temos um nome para este clichê, Salvador Branco, é porque ele aparece em muitas histórias.

Indiana Jones, Atlantis: o Reino Perdido, O Caminho para El Dourado, Avatar (do James Cameron), O Corcunda de Notre Dame (versão Disney) qualquer coisa do Júlio Verne, enfim, a lista é enorme. É claro que vamos copiar o Herói branco ao fazer nossos heróis.

Mas, em plena década de 2020, já existe crítica suficiente para superarmos isso. Por esse motivo, fica difícil relevar esse clichê na obra de Carol Chiovatto.

Já começamos a observá-lo desde seus trabalhos mais antigos. O conto “Ecos de Maztah”, publicado na antologia Space Opera, parece mais o capítulo 1 de uma história maior. É uma space opera bem… space opera mesmo, uma aventura ao estilo Star Wars. Mas a história começa com a protagonista, Zilah, exilada em um planeta longe da “civilização” de onde ela vem, onde habitam seres que são chamados de fadas. As fadas tem seu organismo ligado diretamente ao ecossistema. Então quando Zilah percebe Nadezhada, uma fada, doente, sabe que tem algo errado. Era o Império Beta-centauriano que estava atrás dela.

Zilah se entrega e, durante o conto, vemos a grande fuga e várias coisas. No final, quando ela retorna a Maztah, percebe que o planeta foi destruído. Então decide que vai enfrentar o Império Beta-centauriano e não se esconder mais.

Acaba que as fadas cumprem o papel de “bons selvagens” e só servem para serem salvas e, depois, vingadas pela heroína que vem de um lugar mais “civilizado”. Tá aí como funciona o Salvador Branco.

Em Porém, Bruxa, este deve ser o maior defeito do livro. Ísis é a heroína que praticamente faz tudo. Helena não consegue lidar com os casos na Delegacia da Mulher e precisa da ajuda mágica de Ísis; um terreiro de candomblé foi vandalizado e não há uma comunidade para lidar com aquilo, depende de Ísis resolver o problema. Caramba, até Exú, um orixá, pede ajuda de Ísis!

E, para completar, o objetivo do antagonista ‒‒ o pastor Marcos Dimas, um bruxo por pacto ‒‒ é libertar um demônio cristão selado por indígenas na época da invasão portuguesa. Então temos este selo guardado por indígenas há quinhentos anos, mas agora os indígenas não conseguem protegê-lo de um vilão meia-boca (conforme é ressaltado várias vezes na história). Cabe a Ísis, a bruxa branca, resolver isso para os indígenas também.

Algo interessante nas duas histórias citadas é que só há um personagem que, por vezes, excede a capacidade das heroínas: seu par romântico que é um herói branco. Para Zilah, este é o Major Solomon Sven, e para Ísis, este é o Corregedor Victor Spencer. No final, Carol Chiovatto nem ficou muito longe do Salvador Branco clássico.

Em Senciente nível 5, a postura de Salvador Branco não é de um personagem só: é de toda a cultura bílgia. Se considerarmos que o Salvador Branco é a personificação da cultura imperialista e colonialista européia, em Senciente nível 5 o clichê volta a suas origens.

Bílgia se diz multiculturalista, permitindo que várias espécies estudem na Universidade e partilhem o conhecimento. Entretanto, estas espécies precisam ser classificadas como “senciente nível 5”.  No início do livro é apresentado o conceito de senciência.

“Capacidade de ter consciência de sensações e sentimentos. Faculdade de perceber o mundo ao redor pelos sentidos de maneira consciente”

(p. 3)

Basicamente, é o que muitos consideravam “racionalidade”, o que diferencia humanos de animais, civilizados de primitivos. E Bílgia cataloga as espécies em “níveis de senciência”. Isso, no passado, foi feito por cientistas europeus. Tentavam verificar as diferentes “raças” humanas e identificar seu estado evolutivo. Esta ciência era chamada de eugenia, e foi uma das bases para os nazistas defenderem a superioridade da raça ariana e promoverem genocídio contra os povos “inferiores”.

O problema dos níveis de senciência é o mesmo problema da eugenia: os bílgios se colocaram como parâmetro do mesmo jeito que os brancos europeus o fizeram. Eles eram os “sencientes nível 5”, e os outros são escalados segundo o quão parecidos conseguem ser com eles próprios. Os critérios de classificação são culturais. Usar critérios culturais para classificar o nível de cultura de outros povos é, em essência, etnocentrismo. Isso leva a racismo e, no final, a eugenia. A história do século XVI até a atrocidade nazista do século XX mostra a que fim leva esta doutrina.

Curiosamente, os bílgios não acharam estranho a cultura eugenista e capacitista dos hati. Ao final da história, Leonora, esposa da Soberana Rea de Lena-Hátia, está grávida. Então sabemos que é comum em Lena-Hátia a manipulação genética para selecionar os “melhores indivíduos”. Como Leonora e Rea optaram por parto normal, pelas leis do Estado, deveriam avaliar se o feto é saudável o suficiente. Se, por acaso, fossem detectadas características que os hati considerassem inadequadas, então as leis determinavam o aborto.

Em Árvore Inexplicável, isso foi reparado em grande parte. Em diversos momentos, a história e os personagens questionam até mesmo a postura de colocar a humanidade enquanto superiora às outras espécies ‒‒ que mudança radical da postura adotada em Senciente nível 5! Porém ainda sobraram alguns detalhes incômodos.

Os Floresta, a família de pessoas que possuem poderes de interagir com a natureza e conversar com animais, são ricos. Ok, talvez “classe média alta”. Gente como eles nesta história é perseguida o tempo inteiro, mas por que são exatamente aquelas pessoas? Gente branca (descendentes de árabes, mas não em um contexto em que são lidos como pessoas marrons) com mais recursos. Existe, na vida real, vários povos ligados a esta terra e que são perseguidos: todos os povos originários, as comunidades ribeirinhas, os quilombolas, e os povos da floresta. Em nenhum momento há qualquer ligação entre as pessoas que, na vida, real lutam pelo direito à terra e direito à preservação dela contra a exploração do capital, e as pessoas que possuem esses “poderes” e protegem os abaobis ‒‒ macacos azuis superespeciais. O máximo de menção que existe é a palavra abaobi, que é um neologismo com base no tronco linguístico tupi. Mesmo assim… Onde ficam os indígenas do tronco tupi nessa história?

Claro que, por um lado, fiquei aliviado de a história nem chegar a abordar estes povos tradicionais. As outras obras foram tão significativas com o Salvador Branco que eu temia que o mesmo acontecesse aqui. São questões muito vivas e muito caras ao Brasil, é difícil de lidar até mesmo na vida real! Por outro lado, fica esse incômodo de que só brancos podem ser heróis.

E sim, a representatividade negra da Mayara e amarela da Yoko e Tadashi não dizem muito. Falando em representatividade…

Representatividade

Sim, isso tem sido apontado como fator de elogios nos últimos anos. Afinal, representatividade importa e etc etc. Mas, conforme já venho defendido há algum tempo, existem espaços que não foram feitos para ocupar, e sim para destruir.

Poderíamos, por exemplo, elogiar a diversidade de pessoas em Porém, Bruxa ‒‒ não fosse por toda aquela estrutura Salvadora Branca já citada. Acaba, que, no final, o círculo de amizade da Ísis parece uma escalação:

Personagem bissexual: Murilo

Personagem trans: Dulce Vitória

Personagem negra: Helena

Personagem de candomblé: Fernanda

Infelizmente, porém, não sobrou nenhuma cota de política afirmativa para o interesse romântico dela. Aí fica para o Victor Spencer, branco de olhos azuis, mesmo.

Enfim, o maior problema com estes personagens é justamente o lugar em que ocupam na história. Quando somos apresentados a Murilo, Ísis está decepcionada porque ele parece chateado. Mas isso não é uma preocupação com o estado emocional do amigo. É que o Murilo tem relacionamento aberto com seu marido, o Marcos, e Ísis está com muita vontade de transar.

“Não parecia muito bem humorado, dava para ler isso no longo gole de vinho e nos lábios crispados que se seguiram, adornados com o olhar parado e desfocado. Santa paciência. Inspirei fundo para recuperar um pouco da minha capacidade de ser simpática, quase toda perdida com as expectativas frustradas. A noite tinha prometido diversão  e quem sabe alguns orgasmos, mas parecia prestes a virar uma sessão de terapia.

Bem, para que servem os amigos?”

(p. 10, narrado por Ísis)

E as demais aparições de Murilo são para fazer coisas para Ísis: transar com ela quando ela quer diversão, cuidar dela quando está emocionalmente abalada, e oferecer uma análise de discurso para subsidiar a investigação ‒‒ mas que não contou nenhuma novidade, Murilo chegou atrasado nessa.

Helena e Fernanda oscilam entre oferecer algum tipo de apoio ao trabalho de Ísis ‒‒ como pesquisar a símile de onça da visão concedida por Exú ‒‒ e serem salvas por ela. Helena não parece ter outros recursos para fazer seu trabalho, sempre pede a Ísis (mesmo que o envolvimento dela não seja permitido pela ética profissional tanto na delegacia quanto no Conselho de bruxos). Já Fernanda… Quando o terreiro em que sua mãe é mãe-de-santo foi atacado, ela não recorreu à comunidade que frequenta o espaço: foi atrás de Ísis.

Quanto a Dulce Vitória… Bem, ela está lá para ser um grande exemplo de superação.

“Ela falou num tom prático, de quem já apanhou muito da vida e se acostumou a falar de como as coisas são sem muita revolta, só uma resignação distanciada. Com seus quase dois metros de altura e longos cabelos ruivos ondulados, dignos daquelas propagandas de xampu caro, chamava a atenção de todos por quem passava. E as pessoas não gostavam de reparar em travestis”.

(p. 87, narrado por Ísis)

“Uma vez Dulce chegou a me recitar esse trecho do salmo. Teve criação muito católica no interior, quando ainda a chamavam por um nome de menino que não importa mais. Sempre achei que ex-católicos dão os melhores pagãos, os mais blasfemos, e lá foi ela me provar certa:

‒‒ Ainda que eu caminhe pelo vale das sombras da morte, não temerei mal algum, pois você está ao meu lado ‒‒ disse ela, na ocasião.”

(p. 158, narrado por Ísis)

Quanto às outras pessoas… Bem, elas aparecem em sua vulnerabilidade social para serem salvas. Denise (mulher desaparecida, vítima de feminicídio) e Tainara Martins (sua irmã), Valentina (a menina negra adotada pelos Gagliasso, ops, pelos Bittencourt), Adalgiza (mãe biológica de Valentina, vítima de estupro, encarceramento em massa e assassinato) e Jaciane (irmã de Adalgiza, que nem tinha recebido a notícia da morte da irmã).

Parece um grande grupo de pessoas marginalizadas e fragilizadas orbitando uma Salvadora Branca. Esse não é bem o tipo de representatividade que arranca elogios.

Foto da família Gagliasso. Fundo de luzes alaranjadas e todos estão de branco. Da esquerda para a direita: Garota negra retinta com cabelos longos trançados. Ela está olhando para a direita e fazendo biquinho de beijo. Sua cabeça está encostada na da sua mãe, uma mulher loira de cabelos lisos e olhos azuis, nariz fino. Está sorrindo. Ao lado dela, na parte inferior, está uma criança de uns 2 anos de idade, um menino branco, com cabelo liso castanho, olhos azuis. ele está com a mão na boca. Ao seu lado está seu pai, um homem branco de cabelo, barba e cavanhaque pretos grisalhos. Seus olhos são azuis (Bruno Gagliasso, o único que me lembro o nome). Ao seu lado, está um menino negro, mais novo que a primeira menina, com cabelos negros cacheados, olhos castanhos e um sorriso aberto.
Sério, eu bati o olho na descrição da família Bittencourt e pensei nos Gagliasso. Igual que nem!

Em Senciente nível 5, também temos algumas tentativas. Em termos de raça, não dá para ter muita certeza ‒‒ afinal, é em outra galáxia e os personagens não tem muitas descrições físicas marcantes. Neste aspecto, a única coisa que incomodou foi:

“Vestia as roupas esvoaçantes dos extintos Pioneiros, colonizadores do planeta de Iotuna, trazia soltos os cabelos lisos, compridos e pretos, e estreitava os olhos puxados de um assombroso matiz violeta. Que belíssima figura fazia!”

(p. 34, ponto de vista de Teo, falando sobre Lin)

Não sei se foi uma tentativa de aproximar a aparência de Lin a aparência de uma pessoa amarela ou se foi só uma estética que agrada a Carol Chiovatto (vale lembrar que Alawara, antagonista de Mestres do Conhecimento, conto que se passa nesse mesmo universo, também tem os olhos violeta). Seja como for, “olhos puxados” é um termo pejorativo para se referir a um formato de pálpebra comum no leste asiático. Afinal, os olhos não são realmente “puxados”.

Porém o destaque de Senciente nível 5 vai para Rea, Soberana de Lena-Hátia, que é uma mulher trans. Parece uma posição gloriosa, mas, na verdade, é uma mulher trans ocupando um país que também é imperialista, com uma cultura militarista muito forte ‒‒ mais de uma vez é destacado no livro o quanto Rea e os hatis valorizam a força militar, é até um dos motivos para os bílgios os considerarem “menos sencientes” ‒‒ e Soberana de um sistema eugenista. Afinal, é o bebê dela que seria abortado caso não atendesse às características esperadas de alguém que vai herdar o trono hati.

Ter leis que são duras com os governantes não torna toda a estrutura de Estado de Lena-Hátia menos fascistóide. A posição gloriosa que a mulher trans ocupa nesta história é responsável pela morte e pelo sofrimento de milhares de pessoas. Também não é algo legal ‒‒ e, com o perdão de Cláudia Fusco, é um cenário mais próximo da distopia que da ustopia.

Outra vez, esses problemas foram bem menos intensos em Árvore Inexplicável. Mayara, a personagem negra, é uma ótima personagem ‒‒ por mais que eu ainda considere os capítulos de ponto de vista dela muito mal escritos, provavelmente porque a autora teve dificuldades de conciliar a crença cristã protestante da personagem com suas convicções éticas progressistas e seus conhecimentos científicos.

Yoko e Tadashi são ótimos personagens também, além de cumprirem funções importantes na história. Eles não estão ali só para serem “pessoas amarelas”, eles tem tanta relevância quanto qualquer outro personagem. Vemos também, de forma bem mais orgânica, pessoas LGBTQIA+ vivendo suas vidas, que agora não são resumidas a serem difíceis ou a servirem de exemplo. Tadashi, Tiago, Rosa, Marta… Ao nos depararmos com estes personagens, vemos pessoas. Claro, pessoas com suas particularidades e lutas, mas pessoas. Isso foi inédito na obra da autora e espero ver mais nos próximos trabalhos.

Porém, existe ainda um resquício daquele apelo às características físicas para identificar pessoas racializadas. Não dá para saber ao certo se ela quis caracterizar os Floresta (Rosa, Tiago e Miguel) enquanto pessoas marrons, mas ao descrevê-los, Carol Chiovatto enfatiza e repete muito o “nariz aquilino”.

“Além da altura, tinha os mesmos olhos grandes dos meninos, traços da ascendência árabe da família, e o mesmo nariz fino, ligeiramente aquilino, só que menor”

(capítulo 6, narrado por Diana, falando sobre Rosa)

O problema disso é que: existem traços árabes? A concepção de que traços fenotípicos necessariamente indicam um povo ou uma cultura é, ainda, resquícios da pseudociência eugenista. Já está na hora de superarmos esta concepção.

Imaturidade Política

Praticamente todo o conteúdo das histórias da Carol Chiovatto pretendem ser mensagens políticas. Isso pode ser visto desde seu conto mais antigo, Fundo do Abismo, publicado em 2013 na coletânea “Meu Amor é um Sobrevivente”, da Editora Draco. Lá ocorreu duas guerras nucleares entre Estados Unidos e China.

As bombas são só uma medida de segurança, diziam. Ninguém vai usá-las. Em minha pouca experiência, as pessoas que nãocogitamusar armas nãoas têm.”

O medo da ameaça nuclear desde a Guerra Fria realmente suscitou muitas análises superficiais sobre o processo de desnuclearização, então não me surpreendeu o texto de 2013 só repetir o mesmo mote. O que é interessante é a vontade de lidar com as questões políticas complexas.

Em Ecos de Maztah, os vilões são um império militarista que estabelece colônias. Em Mestres do Conhecimento, tem o terror causado pela imposição imperialista de Bílgia. Em A Última Feiticeira de Florença, temos as contradições da Santa Inquisição. Não me surpreendeu em nada ver essa pegada política nos romances também.

O problema é que lidar com questões complexas nunca vai ser simples. Então é fácil ficar parecendo uma página qualquer da internet que só repete lugares-comuns. Principalmente se você optar por realmente repetir lugares comuns, como

“Somos as filhas das bruxas vocês não conseguiram queimar”

(repetido algumas vezes em Porém, Bruxa)

Algumas vezes, essa imaturidade só parece boba. É o que acontece na crítica às guerras nucleares em Fundo do Abismo (sério? Século XXIII e ainda é Estados Unidos e China?) e também o que acontece com a escolha dos vilões de Árvore Inexplicável.

Quem persegue os abaobis e o povo lá dos Floresta é o Dr. Luciano, que é basicamente um “cientista maluco”. A pesquisa dele é financiada por um deputado empresário do agronegócio ‒‒ aí já vai uma crítica complexa e importante da questão ambiental no Brasil ‒‒ mas não é exatamente este o ponto do Dr. Luciano. Como ele próprio diz…

“‒‒ Sobre sua pergunta mais cedo, eu encontrei financiadores. Você acha que ligo pro agronegócio? Pra demarcação de terra indígena? Isso é com eles. Só quero entender como funciona ‒‒ Ele gesticulou para mim e Sabido ‒‒ Eu preciso. Não é nada pessoal, Diana. É só que aqui dentro ‒‒ ele tocou minha testa com o indicador ‒‒ Tem explicações Coisas que você e o resto da sua gente não sabe e nem tentou aprender.”

(capítulo 58, narrado por Diana)

Isso soa muito cartunesco! Na vida real, a questão por terra e preservação ambiental perpassa o capital. Pensando desde a época da colonização, da aristocracia rural brasileira, até o atual agronegócio, tudo gira em torno da manutenção do poder e maximização de lucros. É uma estrutura gigantesca e bem articulada. Envolve propaganda, investimento em filantropia com interesses escusos, e manutenção da dependência econômica. Fica mais fácil defender o agronegócio quando você imagina que, sem a exportação atual de soja in natura, poderíamos viver algo parecido com a crise econômica na Venezuela (que depende da exportação de petróleo não processado).

Pensar a superação de toda essa estrutura também é complexo. E esse nível de complexidade é esperado numa obra adulta. Apenas colocar o deputado do agronegócio como vilão, apoiando o cientista maluco soa muito infantil. Eu me lembrei dos filmes da “Tainá” e também da série de livros “Legado Folclórico”, do Felipe Castilho (nos agradecimentos, Carol admitiu ter se inspirado nele). A questão é que essas obras são para o público infantil e, só por isso, funcionam desse jeito.

Há outros detalhes cartunescos que acabam demonstrando certa imaturidade política. Em determinado ponto da história, Yoko finge trair seus amigos e vendê-los para o Dr. Luciano ‒‒ e é assim que Diana, a protagonista, e Sabido, um abaobi, se tornam cobaias de laboratório. Porém, tudo o que Yoko queria é coletar informações, então uma vez que entra no laboratório, rouba o notebook do Dr. Luciano e dá um jeito de entregá-lo aos seus amigos.

Todos os personagens sabem que foi um plano estúpido e arriscado que custou muito a todos. Até Yoko sabe disso. Porém, o plano dela só deu certo porque ela era “pequena” e porque os capangas do Dr. Luciano tratam as faxineiras como cenário. É uma crítica válida para a posição patriarcal de diminuir e subestimar mulheres, principalmente as racializadas e as de posição social baixa ‒‒ como as faxineiras são vistas. Entretanto, foi muito inverossímil. Numa instalação de segurança, a faxina não é confiada a qualquer pessoa. Yoko teve sucesso porque os vilões foram patetas (e porque o plot precisava disso).

Isso de vilão pateta se repetiu nos três romances. Em Porém, Bruxa, temos o André Schmidt abusando de sua autoridade para assediar Ísis e o pastor Marcos Dimas, acreditando que poderia fazer o que quiser ‒‒ mas na verdade, era um bruxo mequetrefe. Já em Senciente nível 5, o General Zena ‒‒ um vilão com motivo “legítimo”, já que queria uma vingança do genocídio de seu povo realizado por Bílgia ‒‒ foi mero peão nas mãos do Vice-Reitor Gui Dave, que praticamente se entregou no momento mais importante da concretização de seu plano. Quem dera se, na vida real, os vilões fossem entidades individuais que não conseguem nem manter seu poder! Já teríamos derrubado todos.

Mas o aspecto bobinho não é o único risco. Às vezes essa imaturidade política leva a caminhos perigosos. Foi o caso da eugenia em Senciente nível 5 e é o caso de certos discursos feministas radicais e feministas liberais em Porém Bruxa que se aproximam de uma lógica fascista e reacionária.

Algo marcante em Porém, Bruxa (e que se repete em menor grau em Senciente nível 5 e Árvore Inexplicável) é a quantidade absurda de assédios contra a mulher retratados. Se eu citei que muitos momentos importantes da investigação em Porém, Bruxa eram narrados indiretamente, praticamente todos os assédios foram narrados diretamente. Muitos deles eram quase composição de cenário, não tendo nenhuma interferência na história.

Claro que, infelizmente, essas situações são muito recorrentes no cotidiano. O incômodo de lê-las o tempo todo pode servir para emular o incômodo de ter que conviver com isso todos os dias. Mesmo assim, é uma estratégia arriscada. Não sensibiliza tanto as pessoas que não sofrem esses assédios, mas torna a experiência de leitura das pessoas que sofrem bem pesada. Além disso, deixar nuances de fora pode acabar comunicando algo errado, como foi o caso desta passagem em Árvore Inexplicável:

“A verdade era o ônibus lotado de manhã, um homem me encoxando no metrô abarrotado a caminho da faculdade, o sono que me impedia de prestar atenção na aula”

(capítulo 5, narrado por Diana)

Colocar o detalhe do “homem encoxando no metrô” entre as dificuldades do dia-a-dia faz parecer que isso acontece com ela todos os dias. Infelizmente é frequente, mas não chega a ser necessariamente o drama cotidiano de quem precisa usar transporte público. Isso trouxe um peso a mais para a história, mas esse peso serve a quê?

Além disso, é muito triste ver como as personagens se impressionam facilmente com a gentileza. O que faz de Miguel, Teo e Victor interesses românticos tão vistosos? Simples: eles não são assediadores. Isso é ressaltado na narração como se fosse um feito extraordinário.

Victor (Porém, Bruxa):

“Seus olhos encontraram os meus.

‒‒ Ísis, você honestamente acha que eu usaria telepatia para te machucar?

De algum modo, a insinuação o ofendeu. Magoou-o, na verdade.

(…)

‒‒ Eu nunca entraria na sua mente, exceto se necessário ou com o seu consentimento prévio…

(…) ‒‒ Nunca te ameacei ‒‒ ele prosseguiu. ‒‒ Nem quando você ultrapassou todos os limites do razoável… Você nunca experimentou o poder da minha mente assim. Por que esse pavor tão forte a ponto de te fazer chorar?”

(págs. 77–78, narrado por Ísis)

Teo  (Senciente nível 5):

“‒‒ Naquela hora que você me virou e eu fiz um barulho… você não sabia se foi de dor ou prazer, lembra?

(…) ‒‒ Pois é! Nas vezes seguintes ele só parou e perguntou se estava tudo bem e eu quis matar, mesmo sendo uma atitude bem fofinha. Mas na primeira ele tomou um susto e meioque amoleceu até eu gritar para continuar!”

(p. 115, narrado por Lin, Tera falando sobre Teo)

Miguel (Árvore Inexplicável):

“Fitei-o. Ao menor sinal de desconforto, ele havia parado e pedido desculpas. Eu mal conseguia acreditar na minha sorte”

(capítulo 4, narrado por Diana)

Além disso, alguns discursos ficam bem complicados, como as conclusões de Tera sobre Teo para sugerir a reclassificação dos hatis como sencientes nível 5:

“‒‒ A parte mais bestial do instinto sabe que o macho é mais descartável. Quero dizer, por isso as antigas sociedades que tivessem muitos machos e poucas fêmeas tendiam a desaparecer, e com muitas fêmeas e poucos machos tendiam a prosperar. Então a evolução os tornou mais brutos para garantir a descendência. Quando adquirimos níveis mais elevados de senciência, resquícios desse instinto permaneceram, e disso resultou que machos de diversas espécies se excitam com a dor e o medo da fêmea, porque isso é uma prova de poder sobre ela, um indício de que ela não tem como descartá-lo. Não é maldade, exatamente, e sim uma característica vestigial de bestialidade ‒‒ A empolgação de Tera crescia à medida que ela falava. ‒‒ Conforme o nível de senciência cresce, menos existem esses impulsos. Aumenta a empatia com a fêmea. Agora, nações tão bélicas como a sua costumam ter essas características. Em geral, ainda ocorrem estuprox, por exemplo…

‒‒ Em Lena-Hátia não ocorrem há milênios ‒‒ disse Teo.

(…)

‒‒ Pois é ‒‒ Tera concordou. Mas, respondendo à sua pergunta, Teo, o motivo de eu me concentrar nessa parte que você julgou embaraçosa é o fato de ela indicar que a sua espécie não se excita com a opressão sexual de fêmeas. E nesse caso…

‒‒ Senciente nível 5 ‒‒ sussurrou Lin, estarrecida.

(…) ‒‒ Vocês parecem ter forçado uma seleção natural ao impedir homens com predisposição à bestialidade de se reproduzirem. Vocês podem ter alcançado o nível superior de senciência por causa disso! Não é incrível? Agora preciso conduzir os próximos estudos para confirmar ou refutar essas hipóteses. Já pensou, Lin? Quando eu digo que a cultura pode ter peso genético, debocham de mim. Quero ver agora. Ai, mal posso esperar para ver a cara daqueles puristas da 3!”

(págs. 116–118)

A linha de raciocínio de Tera de dar uma explicação biológica para comportamento de assédio sexual e misoginia soa muito o tipo de explicação que costumamos ouvir de feministas radicais ‒‒ sim, o mesmo discurso que descamba na transfobia. O pior é que “a cultura tendo peso genético” e “vocês forçaram uma seleção natural” é o puro discurso eugenista outra vez!

E esses discursos que beiram o fascismo também são encontrados na revolta da Ísis com a quantidade de assédios que ela presencia. Sim, o motivo da revolta é muito válido, mas a forma como ela se expressa…

“Se pensasse nisso, às vezes tinha o impulso de caçar esses homens de merda e mandá-los para o Inferno de uma vez. Falta não fariam. Eu só conseguia me refrear porque conhecia a Prisão, a implacabilidade do Conselho e a infalibilidade da Corregedoria em encontrar e deter bruxos rebeldes. Como no mundo das pessoas ordinárias, para mudar a centenária política de não-intervenção dos conselheiros, precisava escolher o caminho mais longo das vias burocráticas.

(…)

Nos dias mais rebeldes de minha adolescência, eu debochava da covardia de minha mãe em se sujeitar ao Conselho mesmo quando ele estava tão claramente errado. Parecia-me que quem seguia as leis sempre acabava em desvantagem, pois os bandidos tinham total liberdade de agir como quisessem. Apesar de saber o quanto essa lógica era capaz de criar monstros, às vezes alguns ecos daquela voz adolescente ressoavam dentro de mim. Tão ingênua e bem-intencionada, mas tão mal informada, aquela menina de outrora. Para alterar as resoluções do Conselho seria necessário lobby junto a outros bruxos de campo, o apoio dos corregedores e de pelo menos alguns conselheiros. Eu me cansava só de pensar no nível de politicagem requerida. Não tinha saco nenhum para isso”

(págs. 35–36, narrado por Ísis)

Essa frustração que dá vontade de fazer justiça com as próprias mãos é motor para o fascismo. Por mais que Ísis reconheça que “essa lógica pode criar monstros”, ela ainda continua com um ponto de vista bem derrotista. Não consegue pensar em nenhum horizonte revolucionário com uma luta coletiva, continua pensando nas regras individualistas para fazer toda a “politicagem”. Isso é basicamente fascismo preparado numa panela de pressão.

Depois de dizer isso, acredito ser importante pontuar: essas atitudes de opressão não são determinadas biologicamente. Através de luta coletiva, nós podemos mudar sim as estruturas opressivas da nossa cultura. Mas essas linhas de ação só começam a ser visíveis quando nos dedicamos a realmente compreender o problema que queremos enfrentar. Por isso é tão importante que haja mais maturidade política para lidar com questões complexas.

Conclusão

Estas questões formais e conteudísticas que apontei são os motivos de eu não gostar tanto da obra de Carol Chiovatto. Meu diagnóstico pessoal foi de uma autora que até tenta construir algo interessante, uma literatura de forma divertida com um conteúdo progressista. Entretanto, ela ainda não alcançou este lugar. Árvore Inexplicável me faz pensar num prognóstico positivo, talvez o início de uma virada na carreira literária de Carol Chiovatto. Porém, teremos de esperar os próximos lançamentos para verificar.

Nota

Quando escrevi este artigo, ainda não havia saído a nova edição de Porém, Bruxa pela Editor Suma. Quaisquer modificações possíveis nesta nova edição não foram consideradas aqui.

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